quinta-feira, 3 de outubro de 2013

Bom senso e bom gosto (sobre uma barraca no Príncipe Real)


In Público (3.10.2013)
Por João Appleton

«Lisboa é uma cidade especial, linda para mim, que sou lisboeta, alfacinha mesmo, daqueles que lhe amam as virtudes e lhe perdoam os defeitos com uma ponta de um sorriso, como sucede sempre a quem ama.
Lisboa é a minha cidade, o meu lar, como era de Pessoa, e nela me revejo dia a dia, nas planuras e nas colinas, nas ruas estreitas e nas largas, e nos largos, nas praças onde se juntam e cruzam as gentes, ontem como hoje vindas de qualquer lado, de todos os lados.
Em todos os cantos de Lisboa há histórias e há História, e a Praça do Príncipe Real não foge à regra. Nos tempos mais antigos era a Cotovia, na passagem do Loreto para Campolide, ali no topo do Bairro Alto de São Roque, onde chegam e de onde saem caminhos, para a Praça das Flores de um lado e para a da Alegria do outro e mais para a rua que se chamou Formosa e que infelizmente deixou de o ser, a benefício de um jornal que já não é.
No Príncipe Real, muito antes de assim se designar, que ainda vinha longe quem lhe deu o nome, fizeram-se as intermináveis e não terminadas obras do Conde de Tarouca. Ali foi também o sítio da Patriarcal Queimada, de que resta memória em nome de rua estreita, e mais o Erário Régio, tudo enorme e fracassado - elefantes brancos como hoje se diria.
Depois de tantas histórias, quantas delas por lá enterradas, a Praça ganhou, em meados de oitocentos, a configuração que hoje tem: quase ao centro, sob as árvores, o belo reservatório da patriarcal e, a dar sombra a quem a quer, o enorme Cedro-do-Buçaco que é talvez a sua principal referência actual.
Aí estão o reservatório, o cedro e os edifícios que rodeiam a Praça, estes sem megalomanias mas distintos, quase todos especiais, invulgar harmonia na diversidade, de onde sobressaem pequenos palácios ou palacetes, como lhes chamamos, questão de escala que se ajusta à nossa dimensão.
Esses edifícios, cada um por si, no seu conjunto e mais o sítio, fazem desta uma das mais importantes e belas praças de Lisboa. Bela para ser amada e para ser cuidada, porque amar é cuidar, para respeitar, por todos, dos poderes públicos ao mais anónimo dos cidadãos, lisboetas e visitantes de hábito e de ocasião, passando pelos que detêm ou usam os seus magníficos edifícios.
As longas palavras anteriores são uma espécie de declaração de interesses, dos meus interesses, há muitos anos ligados ao património arquitectónico, ao respeito por este e pelo que representa como referência do nosso passado e, através deste, como ponte para o futuro do nosso destino comum. Acredito nisto, porque acredito que não há futuro sem memória, e não há memória sem património, sem patrimónios.
Por isso me escandaliza, me choca e me indigna o que vi feito ali mesmo, no Príncipe Real, na sua margem poente, quase à ponta. Que as embaixadas podem ser vizinhança dura, não deve surpreender, em tempos de todas as inseguranças, polícias e outros guardas à porta, dificuldades crescentes para quem quer parar carro ou simplesmente passear, que o diga quem caminha ali pela Rua de S. Bernardo à Lapa, onde o espaço público deixou de o ser por inteiro.
Mansos como somos, até aí tudo bem, é virar a cara perante os carrancudos ou fazer desvio que quase não pesa. Mas, ver tapar janelas de um vizinho, construindo um mono encostado a uma fachada, não é próprio de embaixada, no caso a dos Emirados Árabes Unidos, é coisa que nem em bairro de barracas, que aí respeita-se o vizinho e os seus direitos, mesmo quando estes são quase nenhuns.
Não lembra a ninguém, mas foi original a embaixada, ou quem a dirige. Nem água vai, nem água vem. Nada! Foi só apropriação de espaço e foi montar o mamarracho - um telhadozinho mixuruca, alumínios e vidros à maneira de um prédio de subúrbios (sem ofensa para o subúrbio, qualquer que seja, que me desculpem os ofendidos).
E, como os tubos de queda e as caleiras da casa do vizinho incomodavam, percebe-se olhando que foi fácil cortar ali, dar uma martelada mais além, tudo no sítio. A janela de sacada, que ali está há muitas dezenas de anos, foi entaipada a preceito - entende-se como é desagradável deixar que o vizinho possa usar a porta a seu gosto - e até, para garantir a limpeza da obra, uns cabos para alimentar não sei o quê, toca de os fixar à cantaria da fachada do vizinho, mesmo que a parede não lhe pertença.
É claro que se dirá que a questão é jurídica, que o pedaço do pátio será da embaixada, qual será do vizinho; até pode ser que a questão seja jurídica, quem sou eu para o dizer, mas para mim é de bom senso e de bom gosto, ou melhor, neste caso concreto é de falta de senso e de profundo mau gosto. E de falta de respeito. Pelo vizinho e, perdoe-me o vizinho, pelo belo edifício, que esse, pobrezinho, é que não tem culpa nenhuma.
Esta é uma história, entre muitas histórias de agressão ao património; verdadeira como muitas dessas que engolem o nosso passado, por ganância ou simples mas terrível ignorância.
Até talvez possamos falar de casos verdadeiramente importantes, quando comparados com a singeleza deste, apesar de tudo reversível. A mim, o que mais me chocou, pode parecer estranho, é que tudo isto não tem lógica, não tem qualidade, é simplesmente lixo.
Até quando, até onde, vamos continuar a olhar para o lado, deixando passar o que nos devia incomodar?

Engenheiro»

...

O mais interessante é que o principal emir dos EAU estará em Portugal esta semana, para ser empossado como membro da Academia das Ciências. É a altura certa para lhe fazer ver que há profunda contradição entre o estatuto e a obra na sua embaixada.

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